domingo, 30 de agosto de 2015
sexta-feira, 28 de agosto de 2015
CONTO
A LÁGRIMA DE DENDÊ
Patrice de Moraes
Num
desses domingos de família, viajaram para a capital. Queriam, os pais, que este
fosse diferente daqueles rotineiros em que a vida do interior menoscaba a vida
maior. Escolheram passar o dia no Parque da Cidade.
Andavam pelo passeio central. Os três: Seu
Eulálio, o pai; Dona Marise, a mãe; e o único fruto deles, Fabe, seis anos,
pele alvinha, olhinhos um pouquinho puxados ─ parecia ter parentesco com o
oriente ─, bochechinhas redondinhas e salientes, cabelos com os cachinhos que
D. Marise adorava fazer nos dias em que fugiam da rotina. Iam de mãos dadas,
quando de repente Fabe exclamou, perguntando: “Que cheirinho diferente é
esse!?” Além do olfato, seu olhar denunciava a surpresa com que procurava o
lugar de onde vinha aquele cheirinho. D. Marise nada falou porque Seu Eulálio a
antecipara: “Esse cheirinho é de acarajé”. E encaminhou mãe e filha para o
tabuleiro de onde aquele cheirinho vinha.
Fabe experimentou pela primeira vez
aquele bolinho de fogo, com tudo a que tinha direito, exceto pimenta. E aquele
sabor de África nunca mais sairia de seu paladar. Apaixonou-se completa e
infantilmente. Enquanto crianças de sua idade se deliciam com guloseimas, Fabe
se desmancha de prazer saboreando seu acarajé. Parecia algo espiritual. Alguns
diziam que aquilo não era normal para uma criança. Mas Fabe nem tava aí. Só queria saber de seu acarajé.
Se visitavam o Parque da Cidade, acarajé; se iam à praia, acarajé; se ao circo
fossem, acarajé; ao shopping,
acarajé. Até nos aniversários dos amiguinhos, não resistia: “Painho, será que
tem acarajé?” Painho porque D. Marise
não concordava com essas vontades que Seu Eulálio fazia à filha. “Vai acabar
nascendo tarefas e mais tarefas de feijão na barriga dessa menina de tanto que
você a entope de acarajé, Eulálio! Nunca vi contar uma coisa dessa! Maldito
domingo no parque!”, ralhava. Como se diz no interior, ele “batia com o pau no
ouvido” ou “nem dava assunto”, e continuava a satisfazer os caprichos palatais
da filha. Na verdade, o capricho: acarajé. E essa rotina quase diária de
satisfação durou até ela completar nove anos, quando Seu Eulálio e D. Marise se
separaram. A filha ficou com a mãe, e o pai a visitava apenas aos domingos,
quando Fabe, claro, comia acarajé, já que a mãe lhe negava categoricamente
qualquer pedido da iguaria. Nunca saiu das mãos de D. Marise mençãozinha menor
que fosse no sentido de atender à apetência africana da filha. Nunca. Certa vez
ela disse à menina: “Se algum dia você sonhar em me pedir acarajé, vou encher
sua boca de pimenta malagueta para que você nunca mais se ouse!!” E Fabe ficava
durante toda a semana contando os dias para o domingo chegar e comer seu
acarajé.
Num desses domingos, Seu Eulálio deu
uma fatídica notícia à filha, que agora contava onze anos: “Fabe, terei que
viajar a trabalho. Passarei seis meses fora”. Fabe murchou. Ficou amuada. O impacto da notícia abateu-lhe o paladar, a
alma. Após cinco anos com pelo menos um acarajé semanal, como ficaria ela sem
seu fiel companheiro? Como ficariam seu corpo, suas células ─ como ela,
acostumados àquele nutriente ─ com esses
seis meses de quarentena? Como? ─ E um pedaço amargo de tristeza ferveu no
coração de Fabe como ferve o acarajé quando pronto para sair do tacho. Seu
Eulálio ainda tentou: “Seis meses passam rápido”. Nada reanimava a filha. Seis
meses sem acarajé era demais. E numa tentativa de deixá-lo mais próximo da
filha nesse período de ausência, Seu Eulálio lhe ofertou um mimo: um
chaveirinho desses que servem de souvenir
com a figura de uma baiana toda vestida de branco e seu tabuleiro sobre a
cabeça. Fabe o tomou e apertou-o bem forte sobre o peito esquerdo, deixando-o
sentir o elã do seu coração.
Foi-se o primeiro mês. O segundo. O
terceiro. O quarto. No quinto ela já sonhava com o sexto. Seu painho chegara. E
com ele, a notícia: no retorno para o interior, o ônibus em que Seu Eulálio
estava caíra num rio após o motorista ter perdido o controle da direção. Todos
faleceram. Inclusive...
Dona Marise, apesar de nos últimos
dois anos ter-se tornado uma espécie de algoz sentimental da filha, descontando
nela o sentimento de abandono matrimonial ─ canalizava para Fabe o sentimento
de vingança que queria para o marido ─, disse-lhe o que acontecera da forma
mais humana possível. Fabe ficou imóvel, sem esboçar qualquer reação, olhos
fixos nos próprios pés, como se estes fossem a memória dos doces episódios que
vivera com seu pai. Sua única atitude, lembranças depois, foi dirigir-se até a
primeira gaveta da cômoda que ficava ao lado do seu guarda-roupa, abri-la, e
apanhar a baianinha que Seu Eulálio lhe dera. Retornou à cama, sentou-se, e
apertou-a, novamente, sobre o peito esquerdo ─ repetindo o gesto que fizera
quando Seu Eulálio dela se despedira ─ sem nada dizer.
No dia seguinte, pouco antes de o caixão
ser lacrado, por entre aqueles que ainda velavam o corpo, surge Fabe, vestida
de baiana, com um torço na cabeça, inclusive, branquinho, igualzinho ao do
africanizado chaveirinho. Branco só não estava o simulacro de vestido que usava
─ nascera este do alvo lençol que cobria sua cama, mas ora tinha, de fio a fio,
um tom vermelho-amarelado, nunca imaginado para um vestido de baiana. Semblante
abafado, dirige-se concentradamente em direção ao corpo do pai. Ninguém a
obsta. (A forma ritualística com que entrara na sala impôs respeito tão grande
que ninguém, nem mesmo D. Marise, atreveu-se interpelá-la.)
Ela, vagarosamente, despede-se do
lençol. Melhor, do vestido. Acomoda-o nas duas mãos, abre-o diante de si como
se fosse pô-la para quarar. Faz um gesto de suspensão com os braços para que o
vestido se abra no ar e recaia sobre o corpo de seu pai, cobrindo-o
completamente.
Olha seu rosto pela última vez,
fixamente, beija-o na maçã, e, antes que sua face se afaste da do pai, deixa
cair sobre sua fronte uma última lágrima com o mesmo tom dendê que povoava o
vestido que o cobria.
Assinar:
Postagens (Atom)