sexta-feira, 28 de agosto de 2015

CONTO



A LÁGRIMA DE DENDÊ
                                                                                                               Patrice de Moraes

Num desses domingos de família, viajaram para a capital. Queriam, os pais, que este fosse diferente daqueles rotineiros em que a vida do interior menoscaba a vida maior. Escolheram passar o dia no Parque da Cidade.
             Andavam pelo passeio central. Os três: Seu Eulálio, o pai; Dona Marise, a mãe; e o único fruto deles, Fabe, seis anos, pele alvinha, olhinhos um pouquinho puxados ─ parecia ter parentesco com o oriente ─, bochechinhas redondinhas e salientes, cabelos com os cachinhos que D. Marise adorava fazer nos dias em que fugiam da rotina. Iam de mãos dadas, quando de repente Fabe exclamou, perguntando: “Que cheirinho diferente é esse!?” Além do olfato, seu olhar denunciava a surpresa com que procurava o lugar de onde vinha aquele cheirinho. D. Marise nada falou porque Seu Eulálio a antecipara: “Esse cheirinho é de acarajé”. E encaminhou mãe e filha para o tabuleiro de onde aquele cheirinho vinha.
            Fabe experimentou pela primeira vez aquele bolinho de fogo, com tudo a que tinha direito, exceto pimenta. E aquele sabor de África nunca mais sairia de seu paladar. Apaixonou-se completa e infantilmente. Enquanto crianças de sua idade se deliciam com guloseimas, Fabe se desmancha de prazer saboreando seu acarajé. Parecia algo espiritual. Alguns diziam que aquilo não era normal para uma criança. Mas Fabe nem tava aí. Só queria saber de seu acarajé. Se visitavam o Parque da Cidade, acarajé; se iam à praia, acarajé; se ao circo fossem, acarajé; ao shopping, acarajé. Até nos aniversários dos amiguinhos, não resistia: “Painho, será que tem acarajé?” Painho porque D. Marise não concordava com essas vontades que Seu Eulálio fazia à filha. “Vai acabar nascendo tarefas e mais tarefas de feijão na barriga dessa menina de tanto que você a entope de acarajé, Eulálio! Nunca vi contar uma coisa dessa! Maldito domingo no parque!”, ralhava. Como se diz no interior, ele “batia com o pau no ouvido” ou “nem dava assunto”, e continuava a satisfazer os caprichos palatais da filha. Na verdade, o capricho: acarajé. E essa rotina quase diária de satisfação durou até ela completar nove anos, quando Seu Eulálio e D. Marise se separaram. A filha ficou com a mãe, e o pai a visitava apenas aos domingos, quando Fabe, claro, comia acarajé, já que a mãe lhe negava categoricamente qualquer pedido da iguaria. Nunca saiu das mãos de D. Marise mençãozinha menor que fosse no sentido de atender à apetência africana da filha. Nunca. Certa vez ela disse à menina: “Se algum dia você sonhar em me pedir acarajé, vou encher sua boca de pimenta malagueta para que você nunca mais se ouse!!” E Fabe ficava durante toda a semana contando os dias para o domingo chegar e comer seu acarajé.
            Num desses domingos, Seu Eulálio deu uma fatídica notícia à filha, que agora contava onze anos: “Fabe, terei que viajar a trabalho. Passarei seis meses fora”. Fabe murchou. Ficou amuada. O impacto da notícia abateu-lhe o paladar, a alma. Após cinco anos com pelo menos um acarajé semanal, como ficaria ela sem seu fiel companheiro? Como ficariam seu corpo, suas células ─ como ela, acostumados àquele nutriente  ─ com esses seis meses de quarentena? Como? ─ E um pedaço amargo de tristeza ferveu no coração de Fabe como ferve o acarajé quando pronto para sair do tacho. Seu Eulálio ainda tentou: “Seis meses passam rápido”. Nada reanimava a filha. Seis meses sem acarajé era demais. E numa tentativa de deixá-lo mais próximo da filha nesse período de ausência, Seu Eulálio lhe ofertou um mimo: um chaveirinho desses que servem de souvenir com a figura de uma baiana toda vestida de branco e seu tabuleiro sobre a cabeça. Fabe o tomou e apertou-o bem forte sobre o peito esquerdo, deixando-o sentir o elã do seu coração.
            Foi-se o primeiro mês. O segundo. O terceiro. O quarto. No quinto ela já sonhava com o sexto. Seu painho chegara. E com ele, a notícia: no retorno para o interior, o ônibus em que Seu Eulálio estava caíra num rio após o motorista ter perdido o controle da direção. Todos faleceram. Inclusive...
            Dona Marise, apesar de nos últimos dois anos ter-se tornado uma espécie de algoz sentimental da filha, descontando nela o sentimento de abandono matrimonial ─ canalizava para Fabe o sentimento de vingança que queria para o marido ─, disse-lhe o que acontecera da forma mais humana possível. Fabe ficou imóvel, sem esboçar qualquer reação, olhos fixos nos próprios pés, como se estes fossem a memória dos doces episódios que vivera com seu pai. Sua única atitude, lembranças depois, foi dirigir-se até a primeira gaveta da cômoda que ficava ao lado do seu guarda-roupa, abri-la, e apanhar a baianinha que Seu Eulálio lhe dera. Retornou à cama, sentou-se, e apertou-a, novamente, sobre o peito esquerdo ─ repetindo o gesto que fizera quando Seu Eulálio dela se despedira ─ sem nada dizer.
            No dia seguinte, pouco antes de o caixão ser lacrado, por entre aqueles que ainda velavam o corpo, surge Fabe, vestida de baiana, com um torço na cabeça, inclusive, branquinho, igualzinho ao do africanizado chaveirinho. Branco só não estava o simulacro de vestido que usava ─ nascera este do alvo lençol que cobria sua cama, mas ora tinha, de fio a fio, um tom vermelho-amarelado, nunca imaginado para um vestido de baiana. Semblante abafado, dirige-se concentradamente em direção ao corpo do pai. Ninguém a obsta. (A forma ritualística com que entrara na sala impôs respeito tão grande que ninguém, nem mesmo D. Marise, atreveu-se interpelá-la.)
            Ela, vagarosamente, despede-se do lençol. Melhor, do vestido. Acomoda-o nas duas mãos, abre-o diante de si como se fosse pô-la para quarar. Faz um gesto de suspensão com os braços para que o vestido se abra no ar e recaia sobre o corpo de seu pai, cobrindo-o completamente.
            Olha seu rosto pela última vez, fixamente, beija-o na maçã, e, antes que sua face se afaste da do pai, deixa cair sobre sua fronte uma última lágrima com o mesmo tom dendê que povoava o vestido que o cobria.      
















Eu tenho a honra de dizer que sou da Bahia, sim senhor...
                                                          Patrice de Moraes